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sábado, 19 de fevereiro de 2011

Um cisne fora do palco - 2 horas atrás.

Maria José Fazenda, antropóloga, professora na Escola Superior de Dança e ex-bailarina, assistiu a Cisne Negro e escreveu sobre a relação de proximidade ou de distância que o filme estabelece com a realidade do ballet e com a vivência de uma bailarina numa companhia de dança e enquanto intérprete de O Lago dos Cisnes.
Natalie Portman, no filme O Cisne NegroNatalie Portman, no filme O Cisne Negro ()

O ballet é um mundo constituído por especificidades, quando comparado com outros mundos da dança e da não dança. A organização hierárquica interna dos profissionais, o domínio de técnicas de movimento extremamente virtuosas, por parte dos bailarinos, carreiras profissionais que começam cedo e acabam cedo, regras que definem deveres e direitos de cada elemento no interior de uma companhia e de ocupação dos vários espaços de trabalho, procedimentos para cuidar da indumentária, um reportório que, na actualidade, concilia obras clássicas com outras contemporâneas - as quais, sublinhe-se, frequentemente desconstroem as posições entre bailarinos - são aspectos que definem este universo particular.

Algumas destas facetas aparecem no Cisne Negro, de Darren Aronofsky, como as aulas de dança clássica, as bailarinas cumprindo o ritual de coser as fitas às sapatilhas de pontas, a distinção dos bailarinos pela posição que ocupam e as personagens de O Lago dos Cisnes em acção. São, contudo, imagens frequentemente fragmentadas, distorcidas, exageradas. Mas é a colagem da vida de duas personagens, Odette/Odile, que em si são já uma fantasia sem correspondência na vida real, à vida de uma bailarina que, no filme, pode induzir ao equívoco de se acreditar que se está perante algo baseado em situações efectivamente experienciadas pelas bailarinas nos dias de hoje numa companhia de ballet, em vez de um produto da actividade ficcional dos seus autores.

Espírito de classe

Admitamos que alguns bailarinos possam identificar situações realmente vividas de entre o conjunto das que são representadas no filme, como a ansiedade resultante da pressão sentida pelas exigências artísticas ou interpretativas colocadas por um coreógrafo ou mestre de bailado particulares, ou da competição entre pares, ou ainda os eventuais comportamentos abusivos que ameaçam a integridade do sujeito. Estas podem, no entanto, ser situações eventualmente vivenciáveis em qualquer mundo profissional competitivo e hierarquizado e não exclusivamente no mundo do ballet.

Os universos profissionais competitivos e socialmente hierarquizados, em que as posições dos indivíduos são, ao nível das relações de poder, assimétricas, favorecem os comportamentos egocêntricos, narcisistas e abusivos. Nas sociedades democráticas, contudo, espera-se que os dispositivos de detecção de tais abusos funcionem em permanência e que os mecanismos de punição dos agressores sejam imediatamente accionados. O que também se espera que aconteça, sem hesitações, no mundo de uma companhia de ballet, nos dias de hoje, na Europa ou nos Estados Unidos da América (referem-se estes contextos por serem os que melhor conhecemos e por ser o contexto norte-americano aquele a que o filme se refere). São, por isso, surpreendentes os abusos que ficam impunes na versão do mundo de Aronofsky, sobretudo os de índole sexual exercidos por Thomas (coreógrafo/professor) sobre Nina (a jovem bailarina protagonista). Que bailarina se sujeitaria, nos dias de hoje, a tais ofensas no seu local de trabalho? Que coreógrafo ou mestre de bailado conseguiria, nos dias de hoje, manter a sua posição, cometendo tais injúrias?

Num depoimento sobre o Cisne Negro, dado à revista Danser (edição de Fevereiro), Élisabeth Platel, ex-bailarina étoile do Ballet de L"Opéra de Paris - posição mais alta na hierarquia social entre os bailarinos nesta companhia -, exprime a sua estranheza perante a figura do mestre de bailado representada no filme: "(...) A época dos directores de companhias a importunar as jovens bailarinas terminou e parece-me ainda mais espantoso ver isso num filme americano."

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